Como nos tornar-mos deuses...
Acabei de rever um comentário que deixei no blog de uns amigos meus há anos atrás (2007? 2008?), sobre o tema da pobreza. Achei que valia a pena recordá-lo (também para mim próprio, para que nunca me esqueça dele).
"Aprende a dar antes que a riqueza te torne ganancioso" (já não me lembro de quem o disse...)
O combate à pobreza é definitivamente um dos mais importantes desafios que sempre enfrentámos. E ele não é de hoje. Foi um desafio que, quer queiramos quer não, a Humanidade sempre soube perder.
Os “Objectivos do Milénio” (ou “Desafios do Milénio”), sob a égide da ONU, podem-nos, a nós, parecer extraordinariamente simples. "Reduzir para metade a população mundial que vive com menos de 1 dólar por dia até 2015" ou "Assegurar que todos os rapazes e raparigas completam a educação primária" podem-nos fazer sorrir. Mas é a medida da disparidade do Mundo em que vivemos.
Um Mundo em que, ao contrário daquilo que genericamente se pensa, o problema da fome não advém da falta de capacidade de produção (na realidade, esta até é excedentária), mas sim de um problema de distribuição. Um Mundo em que é economicisticamente mais proveitoso pagar a um médico formado e com experiência (por exemplo, do leste europeu) para trabalhar nas obras a carregar sacas de cimento (prejudicando assim a habilidade futura das suas mãos...) em lugar de o colocar a exercer medicina em locais sem assistência médica (por exemplo, na África subsariana). Um Mundo que, não nos iludamos, está muito longe da eficiência de Pareto de que tanto gostaríamos - sim, é ainda possível atingir pontos de maior eficiência económica sem maior gasto de recursos, é só uma questão da dinâmica da alocação dos mesmos.
É tudo uma questão de aproveitamento de recursos. É tudo uma questão de saber como gastá-los e de os gastar nas coisas certas. É uma questão de, enquanto estados, sabermos prescindir de algo para atingir qualquer coisa muito maior em troca. São os EUA trocarem uma parte do que gastam em armamento por projectos de desenvolvimento sustentável no mundo empobrecido, amenizando tensões económico-políticas. É a Europa aceitar uma economia baseada num sistema de comércio justo para com as economias em desenvolvimento, incitando acréscimo de valor junto da base dos recursos primários. É a coragem para estabelecer relações económicas que não passem pelo delapidar de riquezas e produtividade de um país para o enriquecimento de indivíduos, como o fazem os que jogam pela via da corrupção.
Mas é também uma questão de, enquanto indivíduos, seres humanos que primariamente somos, termos a coragem de nos comportarmos de forma diferente da que nos rodeia. É a coragem de procurarmos a felicidade e a satisfação pessoal, não através da acumulação de pequenos prazeres momentâneos (que está substancialmente provado que não trazem felicidade sustentável), mas pela construção de algo que fique indelevelmente no nosso coração – algo que, aconteça o que acontecer, vivamos os anos que vivamos, possamos sempre saber que foi a opção certa, que tenhamos orgulho de ter feito. Apoiar projectos responsáveis em países em vias de desenvolvimento que geram emprego e riqueza para as pessoas que lá vivem (há uns tempos vi uma reportagem fabulosa sobre um grupo de vizinhos norte-americanos que se juntou e mensalmente põem de lado dinheiro para criar um fundo de financiamento de um “banco dos pobres”, analisando as propostas que lhe chegam da Nicarágua, e decidindo como canalizar esse fundo tendo em conta a riqueza que vai criar para os indivíduos da zona que apoiam), ajudar crianças (ou adultos!) a aprender a ler ou a dar-lhes explicações de matematicamente (e acreditem, que, às vezes, temos depois aquelas surpresas que nos enchem a alma por anos e anos e anos), pressionar instituições (como governos) a fazer o que é correcto (como honrar o compromisso dos 0.7% do PIB inscrito nos Desafios do Milénio da ONU), no fundo, aprendermos a retribuir a extrema felicidade que tivemos por, sem nada termos feito por isso, termos nascido ‘deste lado’ – o lado que está neste momento a teorizar sobre a pobreza que nunca sentiu, num computador capaz de fazer milhões de cálculos por segundo, numa sala aquecida, com luz artificial, antes de cumprir o ritual do leite com chocolate antes de deitar…
Nós não pensamos nisso mas, sempre que fazemos algo para tornar melhor o Mundo em que vivemos, dando parte do nosso tempo, da nossa riqueza pessoal, daquilo que nós somos, fazendo aquilo que sabemos estar certos (e que temos consciência que vamos sempre saber que estava certo), estamos a tornar-nos mais felizes, estamos a melhorar a nossa própria vida sem muitas vezes termos consciência disso. Mas, e mais ainda, estamos a tornar melhor a vida de outras pessoas.
Por último (eu quando começo a escrever nunca mais paro, Filipa, não me devias ter desafiado a ler este post), há uns anos atrás li uma crónica de que nunca me esqueci. Um jornalista (salvo erro) português, que conheceu um rapaz indiano em Bombaim (ou Calcutá ou Deli?). O rapaz (menos de 10 anos) fazia biscates na rua e vivia disso. Por qualquer motivo, o jornalista achou-lhe piada e acabou por meter conversa com ele. E soube do seu grande sonho – ter uma caixa para engraxar sapatos só dele. Com uma caixa para engraxar sapatos, podia tratar dos sapatos de quem passava, podia ter o negócio dele e assim juntar algum dinheiro para sair dali. Era o seu sonho! Era o seu projecto de vida! Era para isso que procurava guardar dinheiro dos biscates que fazia. No final do dia, o jornalista, acabava por lhe dar o dinheiro para comprar uma caixa de engraxar sapatos. Para viver o seu sonho! E acabava a crónica dizendo “custou-me 10 contos. Foi esse o preço que paguei para me tornar o Deus de alguém”. Sempre que damos um pouco de nós (seja dinheiro ou tempo ou conhecimento) a alguém, desinteressadamente, para tornar a vida dessa pessoa melhor, no fundo é isso que acontece – por momentos, por breves instantes, roçamos a divindade, o poder de mudar a vida das pessoas.
Comentário ao post em http://pararparaviajar.blogspot.pt/2007/01/o-fim-da-pobreza.html
3 Comments:
Não sei se já o fizeste no Facebook, mas este é mesmo o tipo de post que o Google+ merece que publiques.
Não sei se já o fizeste no Facebook, mas este é mesmo o tipo de post que o Google+ merece que publiques.
Oi!
Obrigado Hélder! É um bom elogio!
Na realidade, este comentário já tem muitos anos (nota-se, há ali uma série de referências já algo desactualizadas), no blog de uns amigos meus.
Eu, pessoalmente, prefiro não o publicitar muito. Fica para quem visita este espaço. ;)
Mas muito obrigado!
Um abraço,
rs
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