As crónicas do Lynx

Uma colecção de pequenas crónicas dedicadas a uma grande paixão de sempre: Viver essa maravilhosa aventura que é o dia-a-dia!

domingo, agosto 16, 2009

Ursa

Estava calor! Sentia-se a transpirar e, pensando bem, todo o dia tinha arfado e andado com a língua de fora, tentando libertar-se daquele sufocante abraço quente. Olhou para fora. Um Sol mais amarelo, mais quente, resplandecia num céu sem nuvens, de um azul perfeito. Um olhar para mais perto. As suas crias brancas brincavam sozinhas num chão de terra, com ervas à volta, e, aqui e ali, um arbusto que despontava, trazendo um apontamento de verde mais intenso à erva curta ainda castanha e esquálida. Aquilo estava errado. E ela sabia.

Sentiu-o! De início a sua presença era apenas uma aragem distante e suave, uma sensação longínqua, mas sentiu-a a crescer aos poucos, sem som, sem nada que a denunciasse, excepto uma intrusão cada vez mais forte, cada vez mais próxima, cada vez mais inevitável. Quando já era impossível de ignorar, apoiou-se nas suas duas patas de trás, e virou a sua grande cabeça para a esquerda, rodando em seguida o tronco para ficar de frente à divindade que anunciava assim a sua presença.

- “Que queres?”, perguntou, directamente, sem rodeios.
- “Essa não é a verdadeira pergunta, e tu sabe-lo bem” obteve como resposta. “A verdadeira questão é ‘é o que tu queres?’”
- “Que me deixem em paz, a mim e aos meus filhotes!”
- “Tu sabes que não pode ser assim. O Mundo está a mudar.”
- “Pois que mude! Eu, por mim, estou bem aqui!”
- “Se ficares aqui, morres! E os teus filhotes também! Não há alternativa.”
- “Pois que morra! Gosto de estar aqui! Os meus filhotes também aqui são felizes!”
- “Não há nada a fazer pois não? Os ursos são sempre os mais teimosos! Podemos ensinar os ratos que não vale a pena procurarem o seu queijo que desapareceu, os pinguins a mudar-se quando o seu iceberg está a derreter, mas, quanto aos ursos, não há nada a fazer… Não me deixas alternativa, sabes?” E sorriu. Um sorriso complacente, tranquilo, determinado. A ursa olhou para ele e percebeu. Percebeu a inevitabilidade, sorveu a tranquilidade. E sorriu de volta.

Hoje, quando chegamos àquela enseada bordoada pela falésia alta, vemos a ursa. Ainda e sempre vigilante, a olhar para os seus filhotes. A vê-los ainda e sempre a brincar com as ondas. Todos eles ainda felizes, apesar do calor muito mais intenso hoje. Apesar de todas as voltas e mudanças a que o Mundo assistiu desde aquela conversa com a divindade. De quando em quando, ainda conversam os dois. Ela, muda, de pedra, a única forma de suportar o tempo dos dias de hoje neste local do Mundo. Ela, a divindade, sentada no seu ombro, falando pausadamente, respondendo às suas perguntas silenciosas. Uma conversa de milhares de anos. Desde sempre embalada pelo suave marulhar das ondas que esculpem aquela paisagem.