As crónicas do Lynx

Uma colecção de pequenas crónicas dedicadas a uma grande paixão de sempre: Viver essa maravilhosa aventura que é o dia-a-dia!

domingo, agosto 01, 2010

Alminha

Escura. A noite estava escura. Naquele planalto esquecido a pouca luz das estrelas mal dava para adivinhar os contornos dos picos rochosos que brotavam da terra a poucas centenas de metros, e a sombra difusa dos pinheiros após o ribeiro era mais uma intuição que uma certeza. Mas cheirava a alfazema, e, apesar de o prazer das coisas agradáveis aos humanos não ser normalmente associada aos demónios, senti-me revigorado e alegre, como se tivesse acabado de atormentar uma pobre alma que tivesse deixado o crucifixo em casa. Além do mais, o ar quente, calmo e sereno convidava a uma noite bem passada. Só tinha que escolher um sítio. Um local onde ficar sentado. Um caminho. Por onde passasse gente, mas não muita. Por onde passasse apenas uma pessoa de quando em quando, um vagabundo deambulando por entre aldeias, à procura do seu pão, um agricultor que voltasse a desoras para a sua casa, um amante que enamorado buscasse a sua rapariga numa aldeia próxima a coberto da noite. E que, por incúria, cruzasse o seu passo naquela noite de almas-penadas com algum demónio com a missão de atormentar os comuns mortais - como eu.


Olhei em volta, à procura de um lugar propício. Queria um em que me pudesse sentar calmamente, aguardando meio escondido dos olhares de quem viesse. Ali, depois do rio, à beira da floresta, parecia estar o que queria. Um bom lugar para incutir medo e terror. Sorri, antevendo uma noite assombrosa, e encaminhei-me para o local que escolhi.


A princípio, foi apenas uma ligeira sensação. Uma impressão vagamente desagradável. Que crescia a cada passo que dava. O peito tornava-se-me pesado à medida que avançava. E a impressão cedo se transformou numa dor fina e curta. Parei. Olhei em volta. Procurando perceber o que se passava. Nada. "Deve ter sido do cão que comi ontem" pensei. Encolhi os ombros. Avancei. E rapidamente comecei a tremer violentamente. Cada passo era uma tortura crescente. Sentia-me como se as minhas próprias entranhas se estivessem a dissolver, a arder no Inferno. E, então, via-a. Olhei o local para onde me dirigia. E, ali, insuspeita, meio escondida entre a folhagem à beira do caminho, no próprio lugar onde me queria abrigar, estava uma pedra. Pequena. 3 palmos erguendo-se sobre o chão. Com uma cruz desenhada na face de rocha. Virada para mim. Benzida num Domingo de Páscoa. Uma alminha. E senti o ardor no meio peito a crescer, a subir pelo meu corpo, a cobrir-me a cara, a cabeça, tudo... até que com um estoiro, senti-me a explodir, a rebentar, tudo se tornou difuso e voltei donde tinha vindo.


O Inferno é bom sítio para escrever memórias. Quando não estamos a ser chicoteados entre as labaredas. Maldita alminha!