Jardim da Estrela em noite de lua cheia
A noite estava fria. E tranquila. Uma grande lua redonda assomava por entre as árvores num céu límpido, lançando reflexos de prata sobre o jardim deserto. Não se ouvia um som, só a luz mortiça dos candeeiros ladeando os caminhos desenhados por entre as árvores e canteiros. A basílica iluminada a marfim perfilava-se a poucas centenas de metros, uma presença branca e imponente. E, por entre o arvoredo, sob um ou outro candeeiro, eu vi-as, quais fantasmas brancos emergindo da escuridão - as estátuas estavam sempre lá.
Cheiro. O meu nariz captou o cheiro primeiro. Não devia estar demasiado longe. Não soprava uma aragem que o pudesse trazer. Tinha que estar perto. Esperei então. E a confirmação chegou pelo som de leves passos lestos. Um homem. A caminhar furtivamente por entre o jardim - mas não tão furtivamente quanto eu consigo. A olhar para a fraca luz irradiada pelo ecran do telemóvel que trazia - ele não saberia que uma distracção pode ser fatal? Ele confiava demasiado nos seus olhos - e os seus olhos estavam distraídos a mirar o ecran e a perscrutar o jardim. Apenas os seus olhos - porque é que os humanos não confiam mais nos outros sentidos, no cheiro que consegue ver para além das paredes, no som que o ar nos traz até aos nossos ouvidos? Mas os olhos dele viram algo - apenas não a minha aproximação. Baixou-se, parecia contente, um sorriso esboçava-se na sua cara, ao agarrar uma caixinha - e eu, no desértico ar parado da noite branca, saltei!
A noite estava fria! E tranquila! E, no seu silêncio, soltei o meu uivo, à lua grande e redonda no céu límpido, que, lançando reflexos de prata sobre o jardim deserto, iluminava o humano caido a meus pés, telemóvel esquisito abandonado a um lado. E uivei de novo, à lua que todos os 28 dias me transforma neste animal sedento e feliz por caçar e ser algo mais que humano. E as estátuas, silenciosas testemunhas cúmplices, como todas as noites em que para aqui venho, presenciavam a cena num cruel assentimento mudo.
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