Roca Negra
Na noite seguinte, cada um dos habitantes da aldeia se reuniu no mesmo local, em silêncio, e, um a um, dizendo para si mesmo palavras antigas, levaram a mão ao peito, arrancaram o Mal que lá havia, a escuridão que nele habitava. Depositaram-no todos eles numa grande ânfora, gigantesca, que tinham propositadamente ali colocado no dia anterior. E apontaram para o homem mais forte e destemido da aldeia, para o mais sábio, o mais conhecedor do que se passava para lá das montanhas que bordejavam a aldeia, que conhecia as montanhas mais altas que ficavam ainda para lá dessas. O homem, sabendo o que o esperava desde a noite anterior, em silêncio, agarrou na grande ânfora ao ombro, segurou o seu bordão, e seguiu caminho em direcção a essas grandes montanhas invisíveis, que só ele conhecia. A aldeia olhou em peso para ele, sem um murmúrio ou som, sabendo que, todo o Mal que neles tinha vivido ia agora ali, naquela vasilha, aos ombros daquele homem corajoso.
E o homem andou, andou durante dias, cada um deles sentindo, cada hora que nele estava contida percebendo, que o Mal que na aldeia habitava e que ele carregava cada vez mais se tornava mais pesado. O que de início parecia ar, vazio, era agora cada vez mais pedra, rocha, dureza granítica, dificuldade. Mas, o homem, consciente da magnitude do que lhe tinha sido pedido, continuou. Cerrou os punhos e os olhos, respirando bem fundo e prosseguiu, prosseguiu carregando o Mal, subindo penedias, descendo vales, cruzando rios. E, quando chegou a um pico suficientemente alto e distante, finalmente parou a sua caminhada de semanas. Pousou finalmente a sua carga, descendo-a dos ombros e, finalmente, observando-a. E o que viu deixou-o sem palavras pois, da ânfora, não se vislumbrava sinal, e aquilo que agarrava mais não era do que um penedo gigantesco, de rocha dura e escura como o Mal que sabia conter. E fitou-a nos olhos, aquela rocha negra, por um segundo, abandonando-a em seguida, deixando-a ali ao mesmo tempo que seguia de volta para a aldeia, leve nos ombros, mas com a alma pesada, porque sentia que ali deixava também algo de seu e das gentes a quem queria.
Passados 5 dias, chegou à aldeia, transpôs a pequena ponte sobre o riacho seguido de relva verde e fofa, a primeira casa e parou de manso no pequeno largo da igreja, abraçando o dia solarengo e sorvendo o ar fresco da manhã. E, nesse instante, olhando para as pessoas à sua volta, que ele amava e por quem tinha levado o Mal para as montanhas, percebeu. Nada se tinha alterado nos últimos dias. Os pobres continuavam pobres, a menina triste continuava triste, o cão abandonado e esfomeado não tinha encontrado uma alma boa que o alimentasse e desse o cuidado que merecia. O Mal que ele tinha levado para a montanha sob a forma de uma rocha escura não era mais do que uma ilusão - a verdadeira capacidade de fazer o Bem estava em cada um de nós. Não era preciso uma reza antiga, não era preciso erradicar o Mal, negá-lo, procurar abandoná-lo numa montanha distante. Bastava apenas um desafio muito maior, pensar em pequenos gestos, pequenas coisas simples que deixavam os outros mais felizes, pequenos desvios despreocupados que não lhe faziam diferença mas que tinham valor para os outros. Partilhar a janta com o mendigo da aldeia em troca de pequenos trabalhos, contar uma história todos os dias à menina triste, deixar um pouco de comida sempre de lado e uma festa para um cão esfomeado.
E, todos os anos, como que para renovar os seus votos, o homem agarrava no seu cajado e, andando dias por montes e vales, procurava o Mal que tinha deixado na montanha. E passava uma noite a conversar uma conversa de um só sentido com aquele penedo gigantesco e negro, contando-lhe as histórias do Bem que fizera nesse ano. E, por vezes, parecia-lhe que o Mal lhe sorria condescendente, aprovadoramente, como que lhe dissendo que fizera bem, dando-lhe conselhos, guiando-o pela forma de tornar mais alegre o seu dia, mais feliz as horas dos que o rodeavam. O Mal, ensinando-o a fazer o Bem.
(foto por Kelux)
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