As crónicas do Lynx

Uma colecção de pequenas crónicas dedicadas a uma grande paixão de sempre: Viver essa maravilhosa aventura que é o dia-a-dia!

sábado, agosto 11, 2007

3,5 kms...

Parei a bicicleta junto à pouca sombra que aquela árvore junto à estrada trazia, sob o Sol a pique da uma da tarde transmontana, encostei-a ao rail, do lado da estrada, transpus a berma e sentei-me no chão, indiferente às irregularidades das pedras e apenas feliz por estar sentado, a recuperar o fôlego.

Há 15 dias atrás, tinha recebido um mail de um amigo meu, companheiro de outras aventuras no Challengers e não só. O título do mail do Tiago era "Vamos fazer uma coisa à Homem?".

Foi assim que, muitas hesitações, alguns treinos e muitos conselhos de amigos acompanhados de uns "És maluco!" que, no dia 10 de Agosto, às 10 horas da manhã, eu e o Tiago dávamos as primeiras pedaladas, a sair de Fafe, em direcção a um percurso de 60,4 kms, em que os últimos 8,5 correspondiam à mítica subida da Senhora da Graça, em Mondim de Basto. Para quem não conhece, esta subida é uma das lendárias (se não mesmo a mais conhecida) das subidas da Volta a Portugal a Bicicleta. Basicamente, consiste numa subida de 8,5 kms, a trepar por um monte vertiginoso, com cerca de 920 metros de altitude (nota: o início da subida é a 190 metros, agora calculem a inclinação média...), numa tarde de Agosto transmontana...

E foi isto que nos predispusémos a fazer no dia 10 de Agosto, integrados num passeio cicloturista organizado pela Volta a Portugal. Assim que chegámos ao local da partida (e após termos conseguido levantar os dorsais, no meio da desorganização total que se revelou uma constante ao longo de todo o passeio...) percebemos que estávamos rodeados pode 450 ciclistas com um 'nível de cromice' absoluto. Meus amigos, para além de sermos os únicos (pois, os únicos mesmo!) que não levavam pedais de encaixe, deixem-me dizer-vos que muitos dos nossos companheiros levavam... carros de apoio! Como não éramos os únicos que não levavam bicicletas de corrida de estrada (para aí 5% dos participantes, incluindo nós, levavam BTTs), mantivémo-nos, no entanto, confiantes que aquilo seria sobretudo fogo de vista - afinal, apesar de não termos treinado muito especificamente para esta prova, qualquer um de nós estava em boa forma e como o que pedala são as pernas e não a bicicleta...

O que nos levou ao primeiro banho de realidade do dia. É que, 1000 metros após a partida, já estávamos a ver 90% dos nossos colegas de etapa a 'voarem' à nossa frente! Foi uma sensação incrível, porque acho que nenhum de nós estava à espera daquilo - estávamos a ser ultrapassados por quase toda a gente que tinha partido atrás de nós e não estávamos a passar ninguém... É exactamente o contrário do que costuma acontecer... (na Maratona de Lisboa em bicicleta, nas provas de corrida que qualquer um de nós faz de vez em quando,...)

O percurso, até à Senhora da Graça, provou ser bem 'durinho'. Apesar de fazermos parte dos últimos (não o éramos em absoluto, mas não faltava assim tanto...) e de o carro-vassoura nos te ultrapassado 3 kms depois do início (sim!!!), rolámos a uma média de cerca de 18km/h numa primeira parte da etapa de cerca de 28 kms, sempre a subir (sim, mesmo sempre a subir!), em que passámos de cerca de 50 metros de altitude para rolar na casa dos 550 metros no 'zénite' da montanha. Era, definitivamente, um bom aquecimento para o que se seguiria. E, apesar da nossa posição atrasada, era uma óptima média! O Tiago, depois de ter começado a fraquejar nos quilometros iniciais, voltou ao seu nível e ajudou a puxar pela minha velocidade trepadora (que costuma ser mesmo baixinha) nalgumas das subidas. Tive também oportunidade de 'aprender' a subir com mudanças altas e um ritmo constante, próprio de rolar estrada aberta. E, depois de uma grande subida, há sempre uma grande descida. Cerca de 10 kms até Celorico de Basto, feitos sempre a cerca de 30 / 35 / 40 km/h, sem dar uso aos pedais, aproveitando a força da todo-poderosa gravidade para alongar as pernas (outra maneira de dizer "para esticar as pernas") e levantar o rabo do selim (sim, porque já doía!). Pelo meio, algumas hesitações em cruzamentos, porque a organização (a Lagos Sport esteve muito fraquinha!) se esqueceu de assinalar o caminho correcto - mas, a boa vontade minhota e algumas perguntas permitiram-nos acertar sempre no caminho certo.

Todo o percurso (a subir e a descer e, mesmo, mesmo, nas raras alturas em que era plano) foi feito no meio do verde das florestas, entrecortado por uma ou outra aldeia (algumas com autênticos espigueiros minhotos!), ou algumas passagens sobre ribeiras ou rios que ajudaram a cavar e moldar aquela paisagem, com a Serra do Marão ao fundo. Foi assim que, a meio de uma curva na descida para Celorico, ouvi o Tiago a exclamar "Meu Deus do Céu!" e vimos aparecer, ao fundo, destacando-se do vale do Tâmega em baixo e dos outros montes ao seu redor, qual cone vulcânico (que muito provavelmente é) de desenhos animados japoneses, com a sua forma perfeita e isolado de todos os outros, com Mondim aos seus pés, o Monte da Senhora da Graça. Foi assombroso! Acho que nunca me tinha assustado tanto com um monte! É que é mesmo vertiginoso medi-lo com o olhar, da base até ao topo, perceber qual o caminho que se vai fazer, ver que a estrada serpenteia pela encosta deste lado e que depois 'encaracola' monte acima. É uma presença brutal, que se destaca de todas as outras circundantes e, como eu esperava, apeteceu-me chorar quando a vi! Mas sabia eu...


Foi quando cheguei a Celorico que, pela primeira vez, senti que tinha perdido ritmo. Já não tive aquela velocidade para subir uma das encostas antes de Mondim, mas, depois disso, recuperei a força e a confiança - continuava a beber powerade como nunca costumo fazer (só costumo levar água, que vou acompanhando com uma barra energética de quando em quando), mas, estava a aguentar-me. Só na chegada a Mondim percebi que havia qualquer coisa que já não estava mesmo a 100% - tive que parar para beber, mas, sobretudo, para recuperar ritmo. Faltavam 10 kms para o final - mas 8,5 deles eram "a Senhora da Graça".

Logo no início da subida, disse ao Tiago para se destacar - ele estava claramente melhor do que eu e insistia em levar-me às costas até lá acima. Mas eu não seria capaz de aguentar o ritmo dele e ele, àquele ritmo, era capaz de não conseguir seguir (o Tiago está habituado a trepar em mudanças acima e mais rápidas que as minhas, o que lhe dá maior velocidade) - por isso o melhor era 'soltá-lo'! A subida (apesar do movimento que já se registava com tendas montadas ao lado da estrada, barraquinhas de comes e bebes já a funcionar, carros de apoio de equipas de cicolturismo estacionados a rever e a recuperar quem já tinha acabado) revelou-se verdadeiramente tenebrosa. Conforme já me tinham dito, a inclinação era fortíssima, mas, a grande questão nem era esta - era a combinação da inclinação (mesmo em São João do Estoril, há subidas, que eu trepo, com uma inclinação semelhante) com a extensão (é que nenhuma das subidas em causa em São João tem mais de 200 metros...). Os primeiros 2 kms de subida foram duríssimos (e tenho que agradecer a uma equipa que já tinha acabado e que ainda me deu uma garrafa de água extra a meio destes quilometros), mas ainda me aguentei em mudanças baixinhas (1:3). Consegui ainda acelerar durante cerca de 1 quilometro, aproveitando uma subida ligeiramente mais fácil (1:5), o que me deu alento mas, ao dobrar aquele gancho, tive que desmontar e fazer 200 metros a pé. Voltei a montar e a andar de bicicleta e voltei a desmontar passado um bocado. Estava muito calor. O rabo doía-me. As pernas estavam a perder força. Sentia que o meu estômago estava a dizer-me qualquer coisa (só me lembrava daquele anúncio da Reebok com um maratonista a vomitar e a pergunta "é para isto que corres?"). Faltavam ainda 4 quilometros. Levar a bicicleta, mesmo à mão, estava a custar muito, mesmo muito. Voltei a montar e a trepar. Fiz mais umas dezenas de metros. O Sol queimava o ar à minha volta. De repente vi uma curva em que o bosque se aproximava da estrada.

Parei a bicicleta junto à pouca sombra que aquela árvore junto à estrada trazia, sob o Sol a pique da uma da tarde transmontana, encostei-a ao rail, do lado da estrada, transpus a berma e sentei-me no chão, indiferente às irregularidades das pedras e apenas feliz por estar sentado, a recuperar o fôlego. Fiquei ali quinze minutos, a tentar ganhar forças para voltar a trepar. A 20 metros, 3 cicloturistas que já tinham feito a subida e estavam a descansar sob uma tenda, a beber imperiais, ofereceram-me mais água e incentivaram-me. Mas a minha decisão estava tomada. Definitamente não me estava a sentir bem. E não ia ser capaz de fazer os 3,5 ksm que faltavam. Mandei a mensagem da minha desistência ao Tiago e 'dei-lhe um empurrão moral para que ele completasse a subida (mas sabia eu que ele a ia receber também a empurrar a bicicleta a pé por ali acima, mas que ia recuperar e conseguir atingir a meta, em 4h13m!). A custo, levantei-me e tentei não 'enjoar' ao ver a minha querida companheira de aventuras a minha GT - estava definitivamente derreado, para não suportar sequer olhar para a bicicleta! Montei em cima da bicicleta, atravessei a estrada e desci, por uma descida maravilhosa, a controlar a velocidade para não ultrapassar demasiado os 50 km/h (mas estava tão cansado que só o facto de travar me era penoso) - é incrível como, invertendo o sentido, fiz em 10 minutos o que me tinha levado 1h30 a subir...

Aquela subida é, realmente, sobre-humana. Esta experiência serviu para aumentar ainda mais o respeito pela força e resistência, mas sobretudo pela capacidade de sofrimento de quem a consegue fazer em cima de uma bicicleta. Este ano ainda não foi a minha vez. Mas, para o ano, vou estar em condições de voltar a tentar...